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As biografias e a liberdade de expressão

Rodrigo Augusto Prando (*)    

Na quarta-feira, 10, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou, por unanimidade, a publicação de biografias sem prévia autorização dos biografados ou de seus familiares. Uma vitória, a meu ver, da liberdade de expressão. Tal imbróglio surgiu, com maior ênfase, na ocasião em que o cantor Roberto Carlos conseguiu, na Justiça, retirar de circulação, proibindo a venda de um livro sobre sua vida. A pergunta que, desde 2013, ficou no ar é: o que vale mais – a liberdade de expressão ou o direito à privacidade do indivíduo? Retomo, abaixo, alguns pontos que já havia defendido na época mencionada.

Nossa Constituição e nosso Código Civil engendram as contradições que fazem parte de nossa própria realidade: uma dialética entre o direito de ser informado e a liberdade de expressão e o direito à privacidade, à intimidade, à honra – uma dialética de direitos versus direitos. Não cabem, aqui, considerações jurídicas, deixo-as aos conhecedores do universo do Direito. No entanto, pode-se, ainda que panoramicamente, tratar de elementos de caráter sociológico e, por isso, sociais.

Por dever de ofício, li biografias dos últimos presidentes: Itamar Franco, FHC, Lula e Dilma. Parece-me que foram autorizadas e, por causa disso, muitos poderiam dizer que foram “café-com-leite”, açucaradas e até laudatórias. Tal fato se dá, inclusive, porque muitos escritores temem as consequências legais e sanções financeiras que podem sofrer ao não terem a devida autorização do biografado ou dos herdeiros. No limite, a discussão é, sociologicamente, como relacionar a biografia e a História, a biografia e a sociedade.

Os que foram, são e serão biografados devem, geralmente, ter alguma influência em sua sociedade. São políticos, artistas, atletas, empreendedores, enfim, um conjunto de indivíduos que, de uma forma ou de outra, trazem, com suas ações, certo impacto na vida das pessoas, seja este impacto material ou imaterial. É possível negar que a obra de Chico Buarque é importante para entender o Brasil? Pode-se desprezar os feitos de Fernando Henrique Cardoso e Lula? A história econômica não ganha sentido com as trajetórias de vida de Francisco Matarazzo e do Barão de Mauá? A genialidade de Garrincha? A análise biográfica e a trajetória de vida são importantes recursos de intepretação para as Ciências Sociais. Nesta seara, não só os notórios, os homens públicos, mas, também, o “homem simples”, as pessoas comuns, podem fornecer pistas para desvendar o conteúdo da vida cotidiana e das estruturas sociais.

Os que chamam a atenção, geralmente, são as figuras públicas que, como dito, tem influência e status social. A pergunta tem sido: essas figuras públicas têm direito, então, à sua privacidade? Sim, claro que têm. Mas, ao serem indivíduos “sociologicamente distintos” são alvos de atenção e especial interesse coletivo. Nesta dialética entre a privacidade e honra e a liberdade de expressão, ou seja, entre dois direitos assegurados por lei, fico, sem dúvida, em primeiro lugar com a total liberdade de expressão, com o direito a ser informado, com o direito de conhecer mais e melhor a história de meu país e de seus personagens.

No caso de um biografado ou de seus familiares que se sintam injustiçados, caluniados ou ofendidos, que se utilizem dos recursos legais para corrigir tal ato de afronta à sua vida pessoal. O mundo jurídico tem à sua disposição uma ampla gama de ferramentas conceituais capaz de impor limites aos biógrafos mal intencionados ou mal informados, cujo trabalho não deriva de pesquisa séria. Agora, pedir autorização para escrever sobre determinada pessoa ou, ainda, ter que dividir os ganhos que se tem com os livros ou direitos de venda para o cinema com o biografado ou com a família, é – a meu ver – um disparate.

Em nossa Constituição Federal, no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais – temos os seguintes dizeres, no Art.5º: “V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral ou à imagem” e “IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença”. Não é lógico, sem necessidade de consulta aos advogados, que antes do direito à livre expressão, esteja resguardado o direito de resposta e indenização por dano material, moral ou à imagem? Está escrito. Simples e claro. Uma questão: temos direito a ter uma fazenda? De termos milhares de hectares? Obviamente, a Constituição garante o direito à propriedade: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Esse direito – o direito à propriedade – é o último vindo após o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança. Ainda sobre a propriedade privada, no Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira – no Capítulo III, Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, o Art. 184 reza que: “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização [...]”. Qual o porquê de tratarmos de propriedade privada e reforma agrária. Explico.

Chico Buarque de Holanda, em 2013, engrossava as fileiras do grupo “Procure Saber”, junto a outros artistas da elite cultural brasileira. Gerou indignação que artistas aquilatados como Chico Buarque e Caetano Veloso, até por causa de suas histórias de perseguidos políticos e censurados, estivessem em posições próximas a de Roberto Carlos. Chico Buarque, por exemplo, defendeu – muitas vezes - o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Nesta questão entre o direito à propriedade privada e o direito à terra, Chico não teve dúvidas: ficou do lado dos trabalhadores rurais. Não se esperaria nada diferente dele. Parece-me, salvo melhor juízo, que entre o interesse individual – do proprietário – e o interesse coletivo – dos trabalhadores sem terra – ele tenha escolhido um dos lados. Um direito seu, oras. O espanto, por isso, de muitos tem sido a defesa de Chico da necessidade de autorização prévia de se publicar as biografias. Disse algo assim: “Pensei que Roberto Carlos tivesse direito à sua privacidade, parece que não”. Depois, afirmou que não havia dado entrevista ao biógrafo de Roberto Carlos. Voltou atrás e se desculpou, quando o biógrafo apresentou as evidências da entrevista. De Paris, deu a seguinte entrevista: “Posso até não estar bem informado sobre as leis e posso ter me precipitado [...] repito: posso estar enganado [...] se a lei está errada, se eu estou errado, tudo bem, perdi”.

O STF, enfim, deixou uma clara lição ao país: liberdade, antes de tudo. Que tenhamos o direito de conhecer a nossa história, nossos personagens, sejam os notórios ou os simples. O biografado que, por ventura, se sentir ofendido em seus direitos que recorra à Justiça. Proibir, de antemão, a publicação de um livro? Jamais!

(*) Rodrigo Augusto Prando é Professor de Sociologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia pela Unesp, FCL, Araraquara

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