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Ganhei o dia, por José Roberto Peters

José Roberto Peters *    

Um dia um amigo aqui de Brasília foi visitar o Peru. Um daqueles programas meio de mochileiro. Andou por tudo e, na volta, reuniu os amigos para contar as aventuras. Estava ele mais impressionado com uma cidadezinha do interior do Peru onde andou por uma feira tradicional da cidade. “Cara”, ele dizia, “era enorme, tinha de tudo:  frutas, verduras, artesanato, roupas, eletrônicos, panelas, calçados, animais vivos, animais mortos, vísceras de animais. Tudo pra vender ou trocar. Nunca tinha visto algo assim.” Eu perguntei: por onde você tem andado, então? Não precisa ir ao Peru pra ver isso. Vamos comigo ao Pedregal.

O Pedregal é um bairro do Novo Gama, uma das cidades do entorno do DF. A maioria dos moradores são cearenses, piauienses e maranhenses. A feira do Pedregal tem de um tudo. Acredito que ganha daquela do Peru, até porque duvido que lá você ande de um lado ao outro ouvindo Wesley Safadão ou Simone e Simaria. Este domingo fui à feira — enquanto uns batiam panelas — pra comprar frutas e para uma manhã de diversão garantida.

No meio da feira escuto: “professor”. Era um ex-aluno de matemática. Disse que me viu no começo da feira e falou pra mulher e pro filho: “vamos, tenho que abraçar meu professor e apresenta-lo a vocês”. E me seguiu até que nos encontramos. Poucas profissões têm isso. Quase ninguém atravessa uma rua dizendo “vou ali cumprimentar o engenheiro que projetou minha casa” ou “olha lá, o dentista que mexeu naquele meu dente”. Com professor acontece muito. São as coisas que a gente planta.

Pois bem, lembrei daquele aluno. Quando cheguei naquela faculdade me deram as disciplinas de Álgebra Linear, Geometria Espacial e Modelagem em Matemática. O coordenador ainda me falou: “tem mais um pepino pra você”. Era um aluno que precisava fazer uma disciplina: História da Matemática. Não entendi o “pepino”, História da Matemática é uma das minhas paixões. Ele esclareceu que o aluno era muito fraco. Alguns professores o tratavam como analfabeto. Fui lá, sem preconceitos.

Resolvi naquele momento invocar Paulo Freire pra mostrar que o pepino” ou o “analfabeto” não era problema do aluno, mas sim de professores que, muitas vezes, fazem a pior coisa que poderiam: desistem do ser humano.  

Na primeira conversa, para conhecer o aluno, descobri que ele era pedreiro e tinha muitas dificuldades, mas queria estudar. Acordava muito cedo e trabalhava o dia inteiro. Vinha pra faculdade, muitas vezes, com os apetrechos e a roupa de trabalho. Pedi que me contasse a sua rotina e — como um palestrante que nos seduz com sua sabedoria — me contou do seu trabalho. A matemática envolvida nas suas histórias era da melhor que há. E ele sabia essa matemática intuitiva.

O problema é que não fazia ligação entre o que sabia e o que estudava. E essa ligação — grosso modo — são as competências e habilidades que nós professores precisamos promover.

E ampliando a “palavra geradora” de Freire para “tema gerador” começamos com mesopotâmicos e sumérios e a invenção do tijolo. Como é que esses povos lidavam com o conceito de números e como faziam cálculos. Fomos para a geometria “utilitária” de egípcios e babilônicos. Desembarcamos na Grécia para a formalização e fomos construindo juntos uma ligação entre a ciência e a realidade.

Fui professor de várias disciplinas e acompanhei este aluno. Não preciso dizer que ele se desenvolveu muito. Quando formou eu já não estava mais na faculdade e perdemos o contato, até o encontro na feira. Perguntei como estava a vida. “Professor”, ele me disse, “não podia estar melhor. Dou aulas numa escola boa e bem perto de casa.” E os serviços de pedreiro? Perguntei. “Só na casa que consegui comprar. Meus alunos tomam todo o meu tempo. E eu devo isso a eles.”

Conversamos sobre a turma, sobre a faculdade e outras amenidades. E ele de vez em quando me mostrava ao filho e à mulher e dizia: “esse será sempre meu professor.” E virando pra mim disse: “vou pegar o seu contato pra te incomodar quando tiver dúvidas. Posso?” Sempre, eu disse. Nosso compromisso com os alunos é vitalício, amigo. “Eu sei, disse ele. Aprendi isso também.”

Quando nos despedimos eu tive que matar uma curiosidade: como é que você conseguiu pagar a faculdade? Não era barata. A gente ganhava pouco, mas vocês pagavam bastante. “FIES, professor. Só assim eu pude mudar de vida”. E enquanto uns batiam panelas eu saia da feira com a sensação de ter ganho o dia.

* José Roberto Peters - Mestre em Educação Científica e Tecnológica, professor universitário e consultor técnico da OPAS no Ministério da Saúde

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