O bêbado da Bela Vista
José Roberto Peters *
A gente ouve histórias a vida toda. Ouve e conta. As que eu mais gostava eram as da família. Era importante saber de onde a gente tinha vindo. Meu pai era um exímio contador. Uma que eu adorava era a do vô Teodoro, pai dele, meu bisavô. O pai contava que o vô Teodoro queria ser enterrado na beira do muro do cemitério da Bela Vista, porque era o melhor lugar pra ver as tropas passarem.
Distrito de Mafra, Santa Catarina, a Bela Vista era terra de pequenos agricultores. Em outros tempos foi colonizada por alemães e poloneses. E essa gente não se dava muito bem. No começo não se misturavam: era cada um pro seu lado. Os primeiros túmulos do cemitério — que fica no alto de um cerro — têm poloneses de um lado e alemães de outro. E enterrados em sentidos diferentes.
Depois de um tempo tiveram que se unir, acharam inimigos comuns: os bugres e as dificuldades da vida, não necessariamente nessa ordem. E foram se casando entre si. O vô Teodoro casou com a vó Esmênia, uma polonesa. E desde essa época a língua oficial da família passou a ser o português. O máximo que se permitia era quando queriam algo bem rápido gritavam schnell, schnell.
A Bela Vista era caminho das tropas que levavam mula de Sorocaba, na província de São Paulo, e trazia charque da província do Rio Grande. E à frente dos tropeiros iam sempre os bugreiros pra enfrentar os verdadeiros nativos da região: uma indiada bem braba, segundo o tio Lizandro — outro contador de história da família.
Começou com o nome de Bela Vista, depois trocado por Sepultura, que por razões óbvias não vingou. Por decreto mudou de nome pra Erveira, devido à grande quantidade de pés de erva mate, mas também não pegou. Voltou a ser Bela Vista, que diz mais sobre o local. E assim é até hoje.
Pois bem, a história do vô Teodoro de ser enterrado rente ao muro era a melhor. Até que apareceu lá em casa a Terezinha — que os filhos todos chamam de Zeca —, prima do pai e contou uma melhor: a do bêbado da Bela Vista. Ela até disse o nome, mas que eu não lembro e nem sei se posso dizer.
Diz que o tal uma vez falou que queria ser enterrado bem no meio do cemitério, perto do cruzeiro — que em volta tem alemães-poloneses unidos — por conta que dali era o melhor lugar: dava pra ver passar pela estradinha lá em baixo o caminhão que entregava bebidas pras bodegas. Confirmei a história com o pai e com o tio Lizandro, que não são de mentir. Daí, mudei a minha história preferida.
Essa história fala de mudanças. A vida é assim: uma sucessão de coisas que mudam e que nos levam à frente. As lembranças que nos ligam ao passado impedem que cometamos os mesmos erros. Não que os eliminemos da vida. Por isso é necessário repudiar os que querem voltar ao passado como se não tivessem estudado o bastante pra saber que uma ditadura não ensina nada. Não podemos correr o risco de repeti-la. Repudiar os homofóbicos e fundamentalistas, que apoiados em discursos de ódio impedem que aprendamos com outras formas de pensar.
* José Roberto Peters – Mestre em Educação Científica e Tecnológica, professor universitário e consultor técnico da OPAS no Ministério da Saúde.
A gente ouve histórias a vida toda. Ouve e conta. As que eu mais gostava eram as da família. Era importante saber de onde a gente tinha vindo. Meu pai era um exímio contador. Uma que eu adorava era a do vô Teodoro, pai dele, meu bisavô. O pai contava que o vô Teodoro queria ser enterrado na beira do muro do cemitério da Bela Vista, porque era o melhor lugar pra ver as tropas passarem.
Distrito de Mafra, Santa Catarina, a Bela Vista era terra de pequenos agricultores. Em outros tempos foi colonizada por alemães e poloneses. E essa gente não se dava muito bem. No começo não se misturavam: era cada um pro seu lado. Os primeiros túmulos do cemitério — que fica no alto de um cerro — têm poloneses de um lado e alemães de outro. E enterrados em sentidos diferentes.
Depois de um tempo tiveram que se unir, acharam inimigos comuns: os bugres e as dificuldades da vida, não necessariamente nessa ordem. E foram se casando entre si. O vô Teodoro casou com a vó Esmênia, uma polonesa. E desde essa época a língua oficial da família passou a ser o português. O máximo que se permitia era quando queriam algo bem rápido gritavam schnell, schnell.
A Bela Vista era caminho das tropas que levavam mula de Sorocaba, na província de São Paulo, e trazia charque da província do Rio Grande. E à frente dos tropeiros iam sempre os bugreiros pra enfrentar os verdadeiros nativos da região: uma indiada bem braba, segundo o tio Lizandro — outro contador de história da família.
Começou com o nome de Bela Vista, depois trocado por Sepultura, que por razões óbvias não vingou. Por decreto mudou de nome pra Erveira, devido à grande quantidade de pés de erva mate, mas também não pegou. Voltou a ser Bela Vista, que diz mais sobre o local. E assim é até hoje.
Pois bem, a história do vô Teodoro de ser enterrado rente ao muro era a melhor. Até que apareceu lá em casa a Terezinha — que os filhos todos chamam de Zeca —, prima do pai e contou uma melhor: a do bêbado da Bela Vista. Ela até disse o nome, mas que eu não lembro e nem sei se posso dizer.
Diz que o tal uma vez falou que queria ser enterrado bem no meio do cemitério, perto do cruzeiro — que em volta tem alemães-poloneses unidos — por conta que dali era o melhor lugar: dava pra ver passar pela estradinha lá em baixo o caminhão que entregava bebidas pras bodegas. Confirmei a história com o pai e com o tio Lizandro, que não são de mentir. Daí, mudei a minha história preferida.
Essa história fala de mudanças. A vida é assim: uma sucessão de coisas que mudam e que nos levam à frente. As lembranças que nos ligam ao passado impedem que cometamos os mesmos erros. Não que os eliminemos da vida. Por isso é necessário repudiar os que querem voltar ao passado como se não tivessem estudado o bastante pra saber que uma ditadura não ensina nada. Não podemos correr o risco de repeti-la. Repudiar os homofóbicos e fundamentalistas, que apoiados em discursos de ódio impedem que aprendamos com outras formas de pensar.
* José Roberto Peters – Mestre em Educação Científica e Tecnológica, professor universitário e consultor técnico da OPAS no Ministério da Saúde.
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