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Não dá pra conversar

José Roberto Peters

Em 1937 o cineasta Jean Renoir lança A Grande Ilusão, que figuraria em sua filmografia como um dos melhores. O filme — baseado em fatos reais — se passa na Primeira Guerra Mundial, num campo de prisioneiros. Não mostra a guerra nas trincheiras que marcou o conflito. E o cineasta inovou: atores alemães representando alemães e falando alemão, atores franceses representando franceses e falando francês. Isso também acontece com atores ingleses e russos. Por isso o filme é legendado uma novidade para a época.

O título tem como referência muitos dos diálogos do filme: os personagens vivem a dizer que a guerra vai acabar logo. E como sabemos demorou quatro anos desde que começou em 1914. Ao final o conflito levou à morte cerca de 15 milhões de pessoas e deixou quase 20 milhões de feridos. Há até estimativas que o número de mortos foi maior: perto dos 60 milhões.

Jean Renoir era filho do pintor impressionista Pierre Auguste Renoir. Há quem veja em suas obras a influência do pai, principalmente o realismo. No filme — por mais esquisito que pareça — se fala de paz. Uma antítese: um filme de guerra pacifista. A paz era o sentimento que havia na França nos anos 30. A película falava de 1914, mas trazia a tônica dos anos em que foi feito. Uma das críticas ao cineasta foi a de ter feito um filme sobre a guerra sem mostrar a sua crueldade. Renoir realiza um filme que põe fé na igualdade e na fraternidade entre os homens.

Logo depois do lançamento, que foi um sucesso de público, foi proibido na Alemanha e na Itália. Durante a Segunda Guerra todas as cópias são apreendidas pelos alemães e quando exibidas têm cortes que desfiguram o filme. Coisas interessantes se perderam com os cortes: operários (soldados) franceses, alemães e russos — mesmo falando línguas diferentes — se entendem bem. Aristocratas alemães e franceses (comandantes) — que se comunicam em inglês — se dão bastante bem.

Há uma cena em que o carcereiro alemão se preocupa que o prisioneiro francês não está comendo e tenta animá-lo. Para isso oferece cigarros e uma gaita de boca. Quando sai da cela e tranca a porta fica à espreita e se alegra quando ouve o prisioneiro soprando o instrumento. Alguém imagina uma cena dessas em um filme sobre prisioneiros na Segunda Guerra? Eu não. Renoir mostra o que une e o que separa as pessoas. Mostra sentimentos universais de classe. E que o diálogo é possível, mesmo com as barreiras da língua.

Depois da Segunda Guerra uma cópia do filme é recuperada e restaurada. Em 1958 é relançado e ao invés de trailer os freqüentadores dos cinemas acompanham a fala do próprio Renoir: “Perdoem-me por insistir na autenticidade dos fatos em ‘A Grande Ilusão’, mas há cenas que podem surpreender hoje, principalmente as que falam do relacionamento entre franceses e alemães. É que em 1914 não tinha surgido Hitler e não havia o nazismo que quase fez o mundo esquecer que os alemães também são homens”.

É isso. O nazismo de Hitler — e o fascismo de Mussolini também — mudaram o mundo. Mostraram que o diálogo nem sempre é possível, que não podemos e nem devemos tolerar os intolerantes. Esta é uma luta comum a todos que se unem em torno da democracia. E as sementes do nazismo e do fascismo estão por aí: quando um parlamentar — que já se mostrou pró ditadura e homofóbico  em outras ocasiões — declara que outra parlamentar não merece ser estuprada está a dizer que o estupro é lícito. Quando uma apresentadora de TV corre em defesa do parlamentar e o faz em nome da “liberdade de expressão” confunde a tal liberdade com discurso de ódio. E isso não se pode tolerar.

Todos sabem de quem eu escrevo. E os que dizem, também na imprensa, que se ninguém falasse o assunto morreria não ajudam em nada. Temos que tomar partido e decisões. Eu tomei: quero esse parlamentar cassado, responsabilizado pelas sandices que disse. E mais, se alguém defendê-lo não é meu amigo.

* José Roberto PetersMestre em Educação Científica e Tecnológica, professor universitário e consultor técnico da OPAS no Ministério da Saúde

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