Memórias
José Roberto Peters *
Conta Platão em Fedro que o deus Thoth do Egito encontra-se com rei Tamuz para lhe falar de suas invenções: os números, o cálculo, a geometria, a astronomia, o jogo de damas e a escrita. Quando foi falar das vantagens da escrita disse que ela ia ajudar a fortalecer a memória, que havia inventado um remédio para a memória.
Tamuz, que escutava atento, diz: “Tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer! Ela tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um remédio para a memória, mas sim para a rememoração”.
Lembrei com isso da vó Maria, mãe da minha mãe. Mulher sofrida, filha de uma ucraniana e casada com um alemão. Por este motivo em nossa casa ninguém falava nenhuma das línguas: coisas de rivalidades entre ucranianos e alemães que vem desde sempre. O mínimo que se permitia era a reza em ucraniano à hora de colocar o pão no forno: reza que minha mãe sempre repetia, mas nunca ensinou. Vai ver que é por isso que minhas irmãs nunca conseguiram fazer pão.
Faltava um ano para completar um século quando nos deixou. Viveu muito. Passou por duas guerras mundiais. Criou sete filhos — se contar o Bastião, que foi morar com meus avôs com oito anos e foi embora com 19 para formar a própria família. Dos filhos, viu morrer quatro. Nenhuma mãe merece isso.
A casa da vó — em Mafra, Santa Catarina — era um paraíso para os netos: pés de pêra, maçã, pêssego, marmelo (que eu nunca descobri pra que servia) e caqui. Um rio bem perto, nos fundos da casa, que em outros tempos era abundante em lambaris e em outros abundante em águas, como na enchente de 83. Casa de madeira com quatro pavimentos: porão, cozinha, sala e sótão. Nunca vi uma casa com tantas escadas. Era enorme quando a gente era guri. Hoje nem parece tanto.
Pois a vó era analfabeta. Nunca aprendeu a ler nem escrever. Tudo que sabia era de memória. Dos tempos bons e ruins. Lembrava de coisas que a gente nem imaginava mais. De vez em quando contava alguma travessura que eu e meus irmãos e primos havíamos feito, lembrava das vezes em que estivemos doentes, das viagens à praia que fazíamos, das visitas que recebia em todos os aniversários e de todas as datas em que havia presenteado filhos e netos com colchas de crochê que fazia enquanto assistia novelas na TV.
Mas o privilégio que os netos tinham eram as comidas. Todas guardadas na memória. Uma vez sentei ao lado de sua cama e, com um caderno, anotei as receitas que ela repetia: Aluske, que é um charuto de repolho recheado com arroz e carne moída; Miséria, um molho de vinagre, alho, sal e água, pra comer com batata doce; Zapraska, uma sopa de farinha e toicinho, que a gente comia com pão; Borsch, uma sopa de beterraba (que eu detestava quando criança); Capusta, uma sopa que levava vinagre.
Ainda tinham os cozidos e as conservas. Mesmo no Brasil essa gente que descendia daqueles povos europeus não perdeu a mania de conservar beterraba, pepino, repolho para os longos invernos. Até hoje me é difícil ver uma pessoa comendo beterraba crua. E pepino, só há pouco tempo descobri que pode ser comido sem ser tirado de um vidro de conserva.
A vó sabia tudo de cabeça. No caso dela o rei Tamuz estava certo. E — dependesse desse exemplo — eu não escreveria isso e nem você estaria a ler.
José Roberto Peters – Mestre em Educação Científica e Tecnológica, professor universitário e consultor técnico da OPAS no Ministério da Saúde
Conta Platão em Fedro que o deus Thoth do Egito encontra-se com rei Tamuz para lhe falar de suas invenções: os números, o cálculo, a geometria, a astronomia, o jogo de damas e a escrita. Quando foi falar das vantagens da escrita disse que ela ia ajudar a fortalecer a memória, que havia inventado um remédio para a memória.
Tamuz, que escutava atento, diz: “Tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer! Ela tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um remédio para a memória, mas sim para a rememoração”.
Lembrei com isso da vó Maria, mãe da minha mãe. Mulher sofrida, filha de uma ucraniana e casada com um alemão. Por este motivo em nossa casa ninguém falava nenhuma das línguas: coisas de rivalidades entre ucranianos e alemães que vem desde sempre. O mínimo que se permitia era a reza em ucraniano à hora de colocar o pão no forno: reza que minha mãe sempre repetia, mas nunca ensinou. Vai ver que é por isso que minhas irmãs nunca conseguiram fazer pão.
Faltava um ano para completar um século quando nos deixou. Viveu muito. Passou por duas guerras mundiais. Criou sete filhos — se contar o Bastião, que foi morar com meus avôs com oito anos e foi embora com 19 para formar a própria família. Dos filhos, viu morrer quatro. Nenhuma mãe merece isso.
A casa da vó — em Mafra, Santa Catarina — era um paraíso para os netos: pés de pêra, maçã, pêssego, marmelo (que eu nunca descobri pra que servia) e caqui. Um rio bem perto, nos fundos da casa, que em outros tempos era abundante em lambaris e em outros abundante em águas, como na enchente de 83. Casa de madeira com quatro pavimentos: porão, cozinha, sala e sótão. Nunca vi uma casa com tantas escadas. Era enorme quando a gente era guri. Hoje nem parece tanto.
Pois a vó era analfabeta. Nunca aprendeu a ler nem escrever. Tudo que sabia era de memória. Dos tempos bons e ruins. Lembrava de coisas que a gente nem imaginava mais. De vez em quando contava alguma travessura que eu e meus irmãos e primos havíamos feito, lembrava das vezes em que estivemos doentes, das viagens à praia que fazíamos, das visitas que recebia em todos os aniversários e de todas as datas em que havia presenteado filhos e netos com colchas de crochê que fazia enquanto assistia novelas na TV.
Mas o privilégio que os netos tinham eram as comidas. Todas guardadas na memória. Uma vez sentei ao lado de sua cama e, com um caderno, anotei as receitas que ela repetia: Aluske, que é um charuto de repolho recheado com arroz e carne moída; Miséria, um molho de vinagre, alho, sal e água, pra comer com batata doce; Zapraska, uma sopa de farinha e toicinho, que a gente comia com pão; Borsch, uma sopa de beterraba (que eu detestava quando criança); Capusta, uma sopa que levava vinagre.
Ainda tinham os cozidos e as conservas. Mesmo no Brasil essa gente que descendia daqueles povos europeus não perdeu a mania de conservar beterraba, pepino, repolho para os longos invernos. Até hoje me é difícil ver uma pessoa comendo beterraba crua. E pepino, só há pouco tempo descobri que pode ser comido sem ser tirado de um vidro de conserva.
A vó sabia tudo de cabeça. No caso dela o rei Tamuz estava certo. E — dependesse desse exemplo — eu não escreveria isso e nem você estaria a ler.
José Roberto Peters – Mestre em Educação Científica e Tecnológica, professor universitário e consultor técnico da OPAS no Ministério da Saúde
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