Coisas que eu não entendo
José Roberto Peters *
Há coisas que definitivamente eu não entendo. Se você quiser ser músico de barzinho aqui no Distrito Federal ou no entorno de Brasília tem que saber Renato Russo. Certamente vão te pedir, uma hora ou outra. Há uma devoção quase que inexplicável ao músico por estas bandas.
Pois bem, na mesa ao lado, o mesmo pessoal que bate palma no ritmo e canta junto com o cantor de boteco, faz comentários homofóbicos sobre duas meninas que trocam carinhos — uma alisa o cabelo da outra. Esse pessoal acha que “Eduardo e Mônica” dizia de um amor dito “normal”? Acho que não.
Noutra mesa se discute as vantagens da meritocracia. Os integrantes param somente quando o cantor ataca com o músico brasiliense. Essa gente parou pra analisar o “Faroeste Caboclo”? Acho que não.
Alguns estudantes de direito numa mesa mais adiante falam de corrupção. Das novas revelações do ex-diretor da Petrobrás. Sabe essa gente que o instituto da delação premiada pressupõe algumas premissas: o delator tem que provar o que disse, senão a delação pode não ser aceita. Eles sabem que se ele tem que provar não é muito sábio que os depoimentos sejam revelados, pois podem alertar delatados e estes dificultarem a obtenção de provas? Acho que não.
Ainda, se quiseres ser músico de barzinho, em qualquer lugar do país, tens que saber Raul Seixas. Uma hora vão te pedir: toca Raul! Pois bem, na outra mesa uma menina com uma frase de “Sociedade Alternativa” tatuada no braço — que dá pra ler de longe — tece comentários sobre um post que curtiu no face: “é, esses nordestinos não sabem mesmo votar. Concordo que deveriam ser impedidos...”. Essa moça não entende o risco que corre, porque provavelmente à sua volta tem filhos de pernambucanos, piauienses e outros que construíram quase tudo por aqui? Acho que não.
Um grupo numa mesa logo ali fala o tempo todo de concursos. Daqueles que tem edital, de outros que devem abrir, dos que são feitos por esta ou aquela banca. Sabem tudo. Discutem questões e estratégias. E, no meio das discussões, comentam outras coisas: que o dinheiro da saúde foi parar nos estádios da copa e que-tais, que se constrói porto em Cuba e que defendem o candidato que defende o estado mínimo. Não sabem a diferença entre capital e custeio. Não sabem que um banco — mesmo que público, como o BNDES — não dá dinheiro. Ele empresta. Não sabem que quem defende o estado mínimo não é adepto de concursos. Vão passar? Acho que não.
Noutra mesa — ainda com os crachás à mostra — alguns servidores de um determinado órgão público também falam de concurso. Dizem que estão estudando para saírem de onde estão para outro órgão, também público. Não são nada generosos com o local onde trabalham: os chefes são ruins, a carga-horária não é nada boa, detestam bater ponto e outras questões. Estes caras sabem que quando atendem ao telefone na repartição personificam a própria repartição e, pelo jeito, passam uma imagem de que ninguém presta naquele lugar? Acho que não.
Na última mesa — onde estão a fazer as contas de quanto cabe a cada um — um grupo de rapazes que passou parte da noite a falar de preços de carros, motos, acessórios de bicicletas super-hiper-conectadas com contador de quilômetros, GPS e afins, roupas e calçados reclama o valor cobrado pelo couver do cara que toca Renato Russo e Raul, reclamam dos 10% do garçom: “essa gente tá ganhando muito”. Eles sabem que o Brasil mudou nos últimos 12 anos? Acho que não.
É. Tem coisas que eu não entendo. SQN.
* Mestre em Educação Científica e Tecnológica, professor universitário e consultor técnico da OPAS no Ministério da Saúde
Há coisas que definitivamente eu não entendo. Se você quiser ser músico de barzinho aqui no Distrito Federal ou no entorno de Brasília tem que saber Renato Russo. Certamente vão te pedir, uma hora ou outra. Há uma devoção quase que inexplicável ao músico por estas bandas.
Pois bem, na mesa ao lado, o mesmo pessoal que bate palma no ritmo e canta junto com o cantor de boteco, faz comentários homofóbicos sobre duas meninas que trocam carinhos — uma alisa o cabelo da outra. Esse pessoal acha que “Eduardo e Mônica” dizia de um amor dito “normal”? Acho que não.
Noutra mesa se discute as vantagens da meritocracia. Os integrantes param somente quando o cantor ataca com o músico brasiliense. Essa gente parou pra analisar o “Faroeste Caboclo”? Acho que não.
Alguns estudantes de direito numa mesa mais adiante falam de corrupção. Das novas revelações do ex-diretor da Petrobrás. Sabe essa gente que o instituto da delação premiada pressupõe algumas premissas: o delator tem que provar o que disse, senão a delação pode não ser aceita. Eles sabem que se ele tem que provar não é muito sábio que os depoimentos sejam revelados, pois podem alertar delatados e estes dificultarem a obtenção de provas? Acho que não.
Ainda, se quiseres ser músico de barzinho, em qualquer lugar do país, tens que saber Raul Seixas. Uma hora vão te pedir: toca Raul! Pois bem, na outra mesa uma menina com uma frase de “Sociedade Alternativa” tatuada no braço — que dá pra ler de longe — tece comentários sobre um post que curtiu no face: “é, esses nordestinos não sabem mesmo votar. Concordo que deveriam ser impedidos...”. Essa moça não entende o risco que corre, porque provavelmente à sua volta tem filhos de pernambucanos, piauienses e outros que construíram quase tudo por aqui? Acho que não.
Um grupo numa mesa logo ali fala o tempo todo de concursos. Daqueles que tem edital, de outros que devem abrir, dos que são feitos por esta ou aquela banca. Sabem tudo. Discutem questões e estratégias. E, no meio das discussões, comentam outras coisas: que o dinheiro da saúde foi parar nos estádios da copa e que-tais, que se constrói porto em Cuba e que defendem o candidato que defende o estado mínimo. Não sabem a diferença entre capital e custeio. Não sabem que um banco — mesmo que público, como o BNDES — não dá dinheiro. Ele empresta. Não sabem que quem defende o estado mínimo não é adepto de concursos. Vão passar? Acho que não.
Noutra mesa — ainda com os crachás à mostra — alguns servidores de um determinado órgão público também falam de concurso. Dizem que estão estudando para saírem de onde estão para outro órgão, também público. Não são nada generosos com o local onde trabalham: os chefes são ruins, a carga-horária não é nada boa, detestam bater ponto e outras questões. Estes caras sabem que quando atendem ao telefone na repartição personificam a própria repartição e, pelo jeito, passam uma imagem de que ninguém presta naquele lugar? Acho que não.
Na última mesa — onde estão a fazer as contas de quanto cabe a cada um — um grupo de rapazes que passou parte da noite a falar de preços de carros, motos, acessórios de bicicletas super-hiper-conectadas com contador de quilômetros, GPS e afins, roupas e calçados reclama o valor cobrado pelo couver do cara que toca Renato Russo e Raul, reclamam dos 10% do garçom: “essa gente tá ganhando muito”. Eles sabem que o Brasil mudou nos últimos 12 anos? Acho que não.
É. Tem coisas que eu não entendo. SQN.
* Mestre em Educação Científica e Tecnológica, professor universitário e consultor técnico da OPAS no Ministério da Saúde


Isto não é Brasília, isto é o Brasil, com Z.
ResponderExcluirOnde alguém que lutou pela liberdade de todos vale menos que alguém que tem vô rico e famoso.
Eu não tenho parente rico, mas lutei toda minha vida por liberdade e justiça.
Eu sei ler letra de música.
E também sei ler a realidade.
E aprendi a reconhecer quem pensou em quem nunca antes tinha sido pensado.
O meu país merece mais que um 45 no céu da boca.
Beto. Grande José Roberto Peters. No buteco nos encontramos. Convergências eletivas, sensibilidade jornalística e poética. Tempos bicudos vivemos. Mas restam os papos e as cervejas. Bora tomar umas?
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