O bicho que lança fogo
Neiton de Paiva Neves
Nasci e cresci no “Alto do Querosene”, nas proximidades da antiga Estação da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro e pouco distante do complexo da Estrada de Ferro Goiás, que tinha aqui sua sede.
Minha infância começou onde a cidade terminava, num universo recortado de árvores e de ruas de terra, dominado pela presença que era então muito forte dos trens e das ferrovias que se interligavam.
As idas e vindas dos vagões interrompiam os jogos no campinho de futebol que havia ao lado da linha e carregavam para longe nossa muda curiosidade de meninos. Às vezes nos divertíamos adivinhando o conteúdo da carga ou nos víamos desembarcando como passageiros em São Paulo e outras cidades e nos perguntávamos como seria a vida além dos trilhos.
Conta a história (“Araguari: Cem anos de Fatos e Dados”, livro editado em 1988), que quando chegou a primeira locomotiva em Araguari, apitando, badalando o sino e soltando fumaça, o povo que aguardava a festa de inauguração achou que “era um bicho que lança fogo e tem partes com o diabo” e as “mulheres tiveram ataques e os homens velhos juraram que nunca se serviriam de semelhante cousa, que urra feito bicho e tem fogo no corpo”.
Hoje, mais de um século depois, sinais físicos da Mogiana não existem mais. A antiga Estação, que não era lá nenhuma maravilha arquitetônica, e os armazéns foram demolidos. Os trilhos urbanos deram lugar à Avenida Batalhão Mauá. Os prédios da antiga Goiás em sua maioria estão lá e o belo edifício da Estação foi restaurado.
O encerramento das atividades da Mogiana em Araguari e a transferência da sede da Goiás, em curto tempo, determinaram o fim do mais importante entroncamento ferroviário da região, que fazia da cidade um pólo de atração de produtos e de pessoas.
De certa forma, simbolizaram também o crepúsculo de uma nova era e o começo de outra, marcando a opção do país, do governo do país, pelo transporte rodoviário, relegando para plano secundário e de desimportância as ferrovias, o que provocou profundas mudanças sociais, econômicas, estratégicas etc.
Em alta escala, tudo era transportado através das ferrovias e as cidades pelas quais passavam delas extraiam vida, crescimento, prosperidade. Incrementado o transporte rodoviário, aquelas cidades se esvaziaram e muito poucas conseguiram superar o golpe e encontrar novas alternativas. Beneficiadas foram as cidades que vieram a ser cortadas pelas estradas asfaltadas, em especial aquelas que se transformaram em entroncamentos rodoviários.
Para mim, nunca ficou muito claro (só um pouco) o porquê da opção quase total pela rodovia, quando tudo apontava (como aponta) em favor ferrovia. A experiência em todos os países desenvolvidos sempre mostrou que para deslocar a mesma carga pelo mesmo percurso a ferrovia gasta em média seis vezes menos do que a rodovia.
O país produzia pouco petróleo e adotou o meio de transporte que mais queima esse combustível. O asfalto, derivado de petróleo, precisa de constantes e caros serviços de manutenção e conservação.
O custo da implantação da rodovia pode ser inferior ao da ferrovia, , mas esta tem maior durabilidade, manutenção menos dispendiosa e hoje ser eletrificada. Enquanto o Brasil transporta 70% de suas cargas por caminhões, outros países, como Japão e Alemanha, transportam 80% por ferrovias.
Além disso, só quem viajou de trem onde esse meio de transporte é lavado a sério, pode avaliar o quanto é melhor e mais agradável do que viajar de ônibus e mesmo de carro.
Ao fazer a defesa da ferrovia não ignoro a importância da rodovia, do transporte rodoviário, da indústria automobilística que passou a fabricar os veículos para as estradas asfaltadas, pois estas vieram depois daquela.
Qualquer país que se preze, ainda mais com dimensões continentais como o nosso, tem de investir nas várias alternativas de transporte, priorizando a melhor sem abandonar as demais.
No Brasil as rodovias estão acabando, não existem investimentos em ferrovias ou em transporte fluvial e o transporte aéreo está em crise permanente.
Puxa! Como as lembranças da infância podem se transportar tão rápido e chegar a destinos tão diferentes daquele onde começaram?
-------------------------------------
Nota: Este artigo foi publicado em 2004. Em homenagem ao velho e querido amigo Carlos Wanês, coronel da Força Aérea dos USA, médico e pesquisador brilhante, que aqui esteve e fez rica palestra sobre a ferrovia e a integração nacional, republico-o, com ajustes temporais.
Nasci e cresci no “Alto do Querosene”, nas proximidades da antiga Estação da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro e pouco distante do complexo da Estrada de Ferro Goiás, que tinha aqui sua sede.
Minha infância começou onde a cidade terminava, num universo recortado de árvores e de ruas de terra, dominado pela presença que era então muito forte dos trens e das ferrovias que se interligavam.
As idas e vindas dos vagões interrompiam os jogos no campinho de futebol que havia ao lado da linha e carregavam para longe nossa muda curiosidade de meninos. Às vezes nos divertíamos adivinhando o conteúdo da carga ou nos víamos desembarcando como passageiros em São Paulo e outras cidades e nos perguntávamos como seria a vida além dos trilhos.
Conta a história (“Araguari: Cem anos de Fatos e Dados”, livro editado em 1988), que quando chegou a primeira locomotiva em Araguari, apitando, badalando o sino e soltando fumaça, o povo que aguardava a festa de inauguração achou que “era um bicho que lança fogo e tem partes com o diabo” e as “mulheres tiveram ataques e os homens velhos juraram que nunca se serviriam de semelhante cousa, que urra feito bicho e tem fogo no corpo”.
Hoje, mais de um século depois, sinais físicos da Mogiana não existem mais. A antiga Estação, que não era lá nenhuma maravilha arquitetônica, e os armazéns foram demolidos. Os trilhos urbanos deram lugar à Avenida Batalhão Mauá. Os prédios da antiga Goiás em sua maioria estão lá e o belo edifício da Estação foi restaurado.
O encerramento das atividades da Mogiana em Araguari e a transferência da sede da Goiás, em curto tempo, determinaram o fim do mais importante entroncamento ferroviário da região, que fazia da cidade um pólo de atração de produtos e de pessoas.
De certa forma, simbolizaram também o crepúsculo de uma nova era e o começo de outra, marcando a opção do país, do governo do país, pelo transporte rodoviário, relegando para plano secundário e de desimportância as ferrovias, o que provocou profundas mudanças sociais, econômicas, estratégicas etc.
Em alta escala, tudo era transportado através das ferrovias e as cidades pelas quais passavam delas extraiam vida, crescimento, prosperidade. Incrementado o transporte rodoviário, aquelas cidades se esvaziaram e muito poucas conseguiram superar o golpe e encontrar novas alternativas. Beneficiadas foram as cidades que vieram a ser cortadas pelas estradas asfaltadas, em especial aquelas que se transformaram em entroncamentos rodoviários.
Para mim, nunca ficou muito claro (só um pouco) o porquê da opção quase total pela rodovia, quando tudo apontava (como aponta) em favor ferrovia. A experiência em todos os países desenvolvidos sempre mostrou que para deslocar a mesma carga pelo mesmo percurso a ferrovia gasta em média seis vezes menos do que a rodovia.
O país produzia pouco petróleo e adotou o meio de transporte que mais queima esse combustível. O asfalto, derivado de petróleo, precisa de constantes e caros serviços de manutenção e conservação.
O custo da implantação da rodovia pode ser inferior ao da ferrovia, , mas esta tem maior durabilidade, manutenção menos dispendiosa e hoje ser eletrificada. Enquanto o Brasil transporta 70% de suas cargas por caminhões, outros países, como Japão e Alemanha, transportam 80% por ferrovias.
Além disso, só quem viajou de trem onde esse meio de transporte é lavado a sério, pode avaliar o quanto é melhor e mais agradável do que viajar de ônibus e mesmo de carro.
Ao fazer a defesa da ferrovia não ignoro a importância da rodovia, do transporte rodoviário, da indústria automobilística que passou a fabricar os veículos para as estradas asfaltadas, pois estas vieram depois daquela.
Qualquer país que se preze, ainda mais com dimensões continentais como o nosso, tem de investir nas várias alternativas de transporte, priorizando a melhor sem abandonar as demais.
No Brasil as rodovias estão acabando, não existem investimentos em ferrovias ou em transporte fluvial e o transporte aéreo está em crise permanente.
Puxa! Como as lembranças da infância podem se transportar tão rápido e chegar a destinos tão diferentes daquele onde começaram?
-------------------------------------
Nota: Este artigo foi publicado em 2004. Em homenagem ao velho e querido amigo Carlos Wanês, coronel da Força Aérea dos USA, médico e pesquisador brilhante, que aqui esteve e fez rica palestra sobre a ferrovia e a integração nacional, republico-o, com ajustes temporais.
UBERLÂNDIA-MG, 11 de novembro de 2009.
ResponderExcluirPrezados Srs.,
O saudosismo sobre este tema é realmente impressionante. Muitas famílias tem suas estórias - digo, histórias - e passagens por estes trilhos.
E meu avô, antigo "Guarda-Livros" em Araguari, muito lúcido em seus 90 e tantos anos de idade, se recusou tempestivamente a visitar a nova Estação, por onde circulou incontáveis vezes, transitando entre Franca-SP a Goiânia-GO...
"Tem coisas do passado... que fiquem no passado." (sic)
Eu, como neto respeitoso, traduzo da seguinte maneira:
"- Eu e meus filhos Araguarinos, também tivemos que mudar para Goiânia."
Atenciosamente,
Janis Peters Grants.
Alô, Ísio,
ResponderExcluirDevagarinho estou montando um compêndio, em o meu Blog www.palavrasemendadas.blogspot.com, com o suposto título de Aventura Ferroviária. Veja com o Dr Neiton se posso utilizar este belo texto em sua íntegra em tal suposta aventura literária. Cinco capítulos estão disponíveis no Blog. Obrigado