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Vovô inconformado

Marília Alves Cunha

Esta história ouvi como verídica. Repasso como quem conta um conto: aumento um ponto. Escrevinhador que se preze não desacelera a marcha do pensamento para relatar total e fielmente o fato acontecido.

O vovô Joel gostava demais de ver noticiário na TV. Não perdia um e, apesar da idade avançada, mantinha-se lúcido e atento a tudo que se passava no Brasil e neste mundão de Deus. E dava opinião, aquela opinião severa dos mais vividos, daqueles que viram muita água passar debaixo da ponte, que viveram alegrias e desgraças e continuam aí, atentos, sentindo o chamamento da vida, não obstante a vizinhança da morte.

O vovô Joel ainda vota, mesmo que desta obrigação já tenha se livrado há anos. Vota por devoção. Vota por convicção. Acredita, como sempre lhe ensinaram que votar é o mais importante ato de cidadania, arma do povo contra esbulhadores, usurpadores, que abusam do poder e se lixam para a opinião publica. Mas o vovô Joel, por recomendação médica, esteve uns tempos afastado dos noticiários. A escassez de boas novas e a abundância de notícias ruins estava a aproximá-lo perigosamente de um enfarto do miocárdio. Com tantos anos vividos e com saúde tão boa, tinha de ser poupado! Não dava mais para o pobre, que assistira épocas mais amenas, ficar vendo todo dia aquela desgraceira: deputado pedindo reeleição do Lula, PEC prá lá e prá cá, como se a Constituição fosse conto de carochinha que se muda a bel-prazer, assassinato a sangue frio da Amazônia, farra de políticos com passagens aéreas, auxílio moradia de araque, empreguismo de parentes, afilhados e congêneres por atos secretos (salários milionários), avião caindo, mortes no trânsito, morte morrida, morte matada. E pedófilos, meu Deus, pedófilos. Vovô Joel nunca tinha ouvido falar desta praga, associada do coisa ruim. E é um tal de pai matar filho, filho matar pai, pai matar mãe, mãe matar filho, mãe matar pai, todo mundo se matando, cabeça do vovô pirando, ele nunca tinha visto e nem ouvira falar de coisa igual. O mundo virou a casa do capeta, pensava o vovô, isto é coisa do demo, do coxo, do beiçudo, do anhangá. Urgente e necessário afastar o velhinho dos noticiários. E assim foi feito.

Passado uns tempos, o vovô já bem mais calmo, recuperado dos “quase infartos”, voltou aos noticiários. Assistia junto à família num telejornal, o Ministro do Meio Ambiente ser entrevistado. Vovó Zita, muito astuta, observou logo: “Ah! este é aquele que participou da marcha da maconha!” O velho Joel levantou-se trêmulo da cadeira, beirando um ataque apoplético, gritando descontrolado: “Não acredito! Não acredito!” E queria por toda lei chutar com suas pernas murchas e cansadas o aparelho de TV. Até hoje não acredita e fica repetindo, cabeça enfraquecida: “É mentira!” E o bisneto atrás, em controvérsia: “É verdade, é verdade”.

Francamente, pelo total fracasso das autoridades em eliminar o tráfico, sou até a favor de liberar a maconha. Mas daí a ver Ministro participando da Marcha, é outra história. Coitado do vovô!

Um comentário:

  1. Engraçado, chegar nessa idade é um grande feito e também quero pra mim, só que, com certeza, nada me assustará. Eu achava que a indignação fosse pertinente aos mais jovens. Seu Joel não desiste nunca! Haja coração. Só falta ele ser flamenguista!

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