A lei e os dramas humanos
João Baptista Herkenhoff (*)
Em outros tempos o cidadão comum supunha que o território do Direito e da Justiça fosse cercado por um muro. Só os iniciados – os que tinham consentimento dos potentados – poderiam atravessar a muralha. O avanço da cidadania, nos últimos tempos de Brasil, modificou substancialmente este panorama.
O mundo do Direito não é apenas o mundo dos advogados e outros profissionais da seara jurÃdica. Todas as pessoas, de alguma forma, acabam envolvidas nisto que poderÃamos chamar de "universo jurÃdico". Daà a legitimidade da participação do povo nessa esfera da vida social.
Cidadãos ou profissionais, todos estamos dentro dessa nau. De minha parte foi como profissional que fiz a viagem. Comecei como advogado, integrei depois o Ministério Público. Após cumprir o rito de passagem, vim a ser Juiz de Direito porque a magistratura era mesmo o meu destino. Eu seria juiz no EspÃrito Santo, como juiz foi, não no EspÃrito Santo, meu avô pernambucano – Pedro Carneiro Estellita Lins. Esse avô, estudioso e doce, exerceu tamanho fascÃnio sobre mim que determinou a escolha profissional que fiz.
Meu caminho, nas sendas do Direito, foi marcado de sofrimento em razão de conflitos Ãntimos.
Sempre aprendi que o juiz está submetido à lei. E continuo seguro de que este princÃpio é verdadeiro. AbolÃssemos a lei como limitação do poder e estaria instaurado o regime do arbÃtrio.
Não obstante a aceitação de que o "regime de legalidade" é uma conquista do Direito e da Cultura, esta premissa não deve conduzir à conclusão de que os juÃzes devam devotar à lei um culto idólatra.
Uma coisa é a lei abstrata e geral. Outra coisa é o caso concreto, dentro do qual se situa a condição humana.
À face do caso concreto a difÃcil missão do juiz é trabalhar com a lei para que prevaleça a Justiça.
Não foram apenas os livros que me ensinaram esta lição, mas também a vida, a dramaticidade de muitas situações.
Há uma hierarquia de valores a ser observada.
Não é num passe de mágica que se faz a travessia da lei ao Direito. Muito pelo contrário, o caminho é difÃcil. Exige critério, sensibilidade e ampla cultura geral ao lado da cultura simplesmente jurÃdica.
O jurista não lida com pedras de um xadrez, mas com pessoas, dramas e angústias humanas. Não é através do manejo dos silogismos que se desvenda o Direito, tantas vezes escondido nas roupagens da lei. O olhar do verdadeiro jurista vai muito além dos silogismos.
Da mesma forma que os cidadãos em geral não podem fechar os olhos para as coisas do Direito, o estudioso do Direito não pode limitar-se ao estreito limite das questões jurÃdicas. O jurista que só conhece Direito acaba por ter do próprio Direito uma visão defeituosa e fragmentada.
Estamos num mundo de intercâmbio, diálogo, debate.
Se quisermos servir ao bem comum, contribuir com o nosso saber para o avanço da sociedade, impõe-se que abramos nosso espÃrito a uma curiosidade variada e universal.
* João Baptista Herkenhoff, 74 anos, magistrado aposentado, é Professor da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES) e escritor.
Em outros tempos o cidadão comum supunha que o território do Direito e da Justiça fosse cercado por um muro. Só os iniciados – os que tinham consentimento dos potentados – poderiam atravessar a muralha. O avanço da cidadania, nos últimos tempos de Brasil, modificou substancialmente este panorama.
O mundo do Direito não é apenas o mundo dos advogados e outros profissionais da seara jurÃdica. Todas as pessoas, de alguma forma, acabam envolvidas nisto que poderÃamos chamar de "universo jurÃdico". Daà a legitimidade da participação do povo nessa esfera da vida social.
Cidadãos ou profissionais, todos estamos dentro dessa nau. De minha parte foi como profissional que fiz a viagem. Comecei como advogado, integrei depois o Ministério Público. Após cumprir o rito de passagem, vim a ser Juiz de Direito porque a magistratura era mesmo o meu destino. Eu seria juiz no EspÃrito Santo, como juiz foi, não no EspÃrito Santo, meu avô pernambucano – Pedro Carneiro Estellita Lins. Esse avô, estudioso e doce, exerceu tamanho fascÃnio sobre mim que determinou a escolha profissional que fiz.
Meu caminho, nas sendas do Direito, foi marcado de sofrimento em razão de conflitos Ãntimos.
Sempre aprendi que o juiz está submetido à lei. E continuo seguro de que este princÃpio é verdadeiro. AbolÃssemos a lei como limitação do poder e estaria instaurado o regime do arbÃtrio.
Não obstante a aceitação de que o "regime de legalidade" é uma conquista do Direito e da Cultura, esta premissa não deve conduzir à conclusão de que os juÃzes devam devotar à lei um culto idólatra.
Uma coisa é a lei abstrata e geral. Outra coisa é o caso concreto, dentro do qual se situa a condição humana.
À face do caso concreto a difÃcil missão do juiz é trabalhar com a lei para que prevaleça a Justiça.
Não foram apenas os livros que me ensinaram esta lição, mas também a vida, a dramaticidade de muitas situações.
Há uma hierarquia de valores a ser observada.
Não é num passe de mágica que se faz a travessia da lei ao Direito. Muito pelo contrário, o caminho é difÃcil. Exige critério, sensibilidade e ampla cultura geral ao lado da cultura simplesmente jurÃdica.
O jurista não lida com pedras de um xadrez, mas com pessoas, dramas e angústias humanas. Não é através do manejo dos silogismos que se desvenda o Direito, tantas vezes escondido nas roupagens da lei. O olhar do verdadeiro jurista vai muito além dos silogismos.
Da mesma forma que os cidadãos em geral não podem fechar os olhos para as coisas do Direito, o estudioso do Direito não pode limitar-se ao estreito limite das questões jurÃdicas. O jurista que só conhece Direito acaba por ter do próprio Direito uma visão defeituosa e fragmentada.
Estamos num mundo de intercâmbio, diálogo, debate.
Se quisermos servir ao bem comum, contribuir com o nosso saber para o avanço da sociedade, impõe-se que abramos nosso espÃrito a uma curiosidade variada e universal.
* João Baptista Herkenhoff, 74 anos, magistrado aposentado, é Professor da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES) e escritor.
MeritÃssimo, nada disso vale para o Senhor, mas não me dai da memória...
ResponderExcluirHoje o Parque da Asa Norte, em BrasÃlia, está se transformando no Setor Noroeste da Era Digital, uma outra Asa de luxo e beleza, mas até bem pouco tempo este mesmo santuário, além das espécies do cerrado, também abrigava pessoas em barracos de lona e papelão. Pessoas estas que viviam dos lixos urbanos e da caridade alheia. Eu pertencia a uns poucos que deleitavam-se com a prática da mÃnima caridade.
Na altura da 909 Norte, dentro os lamaçais das chuvas dos caminhos carroçáveis e o lixo do lixo, totalmente nu, conheci o João Paulo se arrastando sorridente. Uma criança de 10 anos, sem escola, com paralisia em ambos os membros inferiores, sem uma peça de roupa, sabendo-se lá quando iria almoçar, sorria-me com os olhos arregalados.
Esta cena insiste em permanecer na minha memória e, com ela, não consigo afastar uma outra. Esta outra trata-se da Vara da Juventude e da Criança também localizada ali naquele mesmo local. Se o magistrado daquela Casa ousasse olhar pra além do muro da sua fortaleza, não mais que cinco metros, veria escancarado o João Paulo - objeto maior de sua lide em duras penas. Sei que chegam muitos processos para serem analisados e que não dá pra ficar procurando mais trabalho, mas os risos do João Paulo ultrapassavam aquele muro e deviam "perturbar" muito. A justiça é a maior caridade depois do trabalho. Que Deus abençoe os juÃzes surdos. Também os cegos. Também os mudos.