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Quem corre por gosto não cansa

Atilano Muradas (*)

O educador Paulo Freire escreveu o interessante texto “A importância do ato de ler”. Foram tantas as coincidências com a minha história de vida que não resisti em dialogar com ele através da freqüência que une os escritores, além de também escrever minha experiência com os livros.

Caro Paulo, li seu texto sobre a importância do ato de ler, o qual acendeu em mim um desejo de lhe falar sobre a minha experiência com a leitura que, em alguns momentos, é impressionantemente idêntica à sua, apesar dos mais de quarenta anos que nos separam. Assim como com você, tudo começou na infância.

Iniciei a leitura do mundo com os meus olhos e a experiência emprestada de meus pais, em Araguari, no Triângulo Mineiro, onde nasci a 24 de outubro de l963. Naquele tempo era difícil alguém ter televisão, por isso, o mundo que eu sentia e filmava com a mente era aquele vindo do rádio, da igreja, das pessoas, da família e dos amigos. Vez e outra aquelas antigas fitas, arquivadas na retina, teimam em arrancar-me lágrimas e sorrisos quando as revejo mentalmente.

Meus pais eram - e ainda são - músicos de igreja, e ensinaram esse ofício aos filhos. Cantávamos bastante em casa e nos cultos, além de fazermos apresentações em outras cidades. Como eu não sabia ler, antes mesmo de entrar na escola, tive que decorar as letras de enormes hinos que nem entendia direito. O banho de bacia - chuveiro era coisa rara - era sempre acompanhado do rádio e das ricas letras das músicas brasileiras, que eu também decorava com facilidade. Tenho essas duas experiências como marcos na minha vida literária.

Da mesma forma que na sua casa, também existiam diversas árvores frutíferas onde nasci e cresci. Além de servirem de platéia, elas eram excelentes locais de brincadeiras. Eram minhas torres para enxergar mais longe e desvendar os diferentes mundos à volta. Sem falar nas flores que a minha mãe cultivava, ensinando-me que a diversidade está em toda parte. Pessoas são diferentes apesar de parecerem iguais.

As mangas, você falou nas mangas. Tínhamos em casa muitas mangueiras e também laranjeiras. Acompanhávamos o crescimento e o amadurecimento de cada manga, de cada laranja. O prazer de chupar mangas “trepado no pé” é impagável, inesquecível.

Você tinha gatos, não acredito! Meu Deus! É muita coincidência. Parece até que vivíamos na mesma casa. Aposto que você também ficava imaginando o que eles estavam pensando. Claro que sim. Toda criança pensa que os animais se compreendem e conversam sobre os homens.

Agora, quando você falou no relógio e suas badaladas, pensei que conhecesse minha casa. Será que naquele tempo todas as casas eram iguais? Era um relógio de quase cem anos, que pertenceu ao meu avô. Funcionava perfeitamente - e funciona até hoje - ditando as horas implacavelmente. Incrível! Ele não saía da parede, mas mandava em todos da casa. Por causa dele, todos vivíamos apressados. Eu não lia bem seu conteúdo, mas aprendi a respeitá-lo como aos pais, porque ele estava por trás de tudo o que se fazia. Ainda hoje, quando telefono para meus pais e ouço o velho e incansável relógio badalando lá no fundo da ligação, imagino que ele está nos mandando um recado.

O vento que agitava as árvores da sua casa natal soprava na minha também, porque vento não tem idade e é onipresente, não é mesmo? Quando ele fazia tremer a janela do meu quarto, eu não pensava que era assombração porque o pai sempre dizia que era Jesus batendo. Nunca entendi por que não abri a janela para ele entrar, afinal, era Jesus.

Esse tempo de colar na retina o mundo sensitivo ampliou-se quando, aos seis anos, comecei a ser alfabetizado por minha mãe. Ela, que estudou apenas o primeiro ano primário, sabia da importância de ler e por isso quis logo me colocar em contato com o maravilhoso mundo das letras.

Aprendi a ler com minha mãe, utilizando a Bíblia e o hinário. Achei o máximo. Agora eu não precisaria mais fingir que estava acompanhando a leitura de um texto bíblico quando estava com outras pessoas.

Nascemos presbiterianos e nosso orgulho é conhecermos bem a Bíblia e os hinos. Apaixonei-me pelas letras de tal forma que me pus a ler tudo que estivesse pela frente.

Com dez anos cursava a quinta série e a minha grande alegria eram as aulas de português e de leitura obrigatória. Obrigatória para a maioria dos meus colegas. Para mim era um prazer. Adorava escrever as redações propostas e até escrevia várias outras, com o mesmo tema, e distribuía para os colegas para que eles entregassem ao professor dizendo que as haviam escrito. Se era pecado, não sei, mas que me ajudou a aprimorar a escrita, isso ajudou.

O primeiro livro que li na biblioteca da escola foi Hans Staden, de Monteiro Lobato. Eu me sentia dono das palavras e das letras. Devorava suas linhas com prazer. Li toda a coleção de Monteiro Lobato enquanto a maioria dos colegas só conversava. Aquelas histórias cheias de árvores, crianças, muita curiosidade, tinham a ver com o fundo do quintal da minha casa.

Meu irmão, Marcos, também contribuiu para que eu me tornasse um apaixonado por livros. Ele não lia, devorava livros. Colocava uma pilha de livros ao lado da sua cama e lia por longas horas, todos os dias. Aquilo me intrigava. “O que era tão interessante naqueles livros?” Meu acerto foi tentar descobrir.

Aos treze anos ganhei um violão e comecei a aprender como tocá-lo com a mesma voracidade que lia todos os livros da biblioteca pública. Complicados eram os acordes, como as narrativas de Machado de Assis, José de Alencar, mas eu gostava. Quanto mais complicado, quanto mais visitas ao dicionário, mais agradável se tornava a leitura, porque um mundo novo se descortinava bem à minha frente. O contato com as letras de músicas e um namorico de menino apresentaram-me os poetas românticos. Tomás Antônio Gonzaga foi o meu preferido, pelo menos naquele período, apesar de gostar de autores mais filosóficos.

A partir dos quinze anos, cantava muitas músicas de Chico Buarque, Toquinho, Francis Hime, Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Zé Ramalho, e tinha profunda admiração por suas letras geniais - como tenho até hoje. Nessa época, encontrei alguns adolescentes que gostavam justamente dos mesmos autores que eu. Nosso papo era sobre o que líamos. Tudo era interessante, tudo era “filosofável”. Ficávamos horas e horas lendo Fernando Pessoa, Hermann Hesse, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond, Ronaldo Rogério de Freitas Mourão e muitos outros. Decifrar letras de músicas era um prazer e comentar os livros um lazer.

Nesse tempo também se aflorou em nós a veia poética. Escrevíamos, fazíamos músicas, participávamos de festivais de música em muitas cidades - para ganhar experiência e passar raiva. Felizmente não houve tempo para as drogas.

Cada um de nós tomou seu rumo. Sebastião e Sérgio foram ser bancários - hoje são psicólogo e físico, respectivamente. Maurão tornou-se físico e foi para a Europa fazer doutorado. Nunca mais o vimos. O Jab é médico não sei onde. Eu me tornei militar do Exército, além de me formar em Teologia e Jornalismo. Casei, tenho dois filhos, plantei algumas árvores, gravo discos e tornei-me aprendiz de escritor.

Hoje tenho milhares de livros em minha biblioteca e não me canso de adquirir outros e ler compulsivamente. Não compreendo a vida sem tê-los e lê-los. Continuo aquele menino sentado na copa de uma árvore bem alta, tentando enxergar cada vez mais longe e compreender as pessoas.

As árvores da minha infância não existem mais, deram lugar a um ferro-velho. Mas o que aprendi com elas, com o relógio, com as flores, levo para a eternidade. Somente o “insubível” coqueiro de não sei quantos metros de altura, que assistiu a minha vida até os vinte anos, continua balançando no quintal do vizinho, firme e forte como as palavras de um bom livro. Não me canso de observá-lo e acho que vou chorar quando ele morrer.

Obrigado, amigo Paulo, por ter me ajudado, através do seu texto, a me lembrar coisas tão lindas da minha infância e juventude. Pena que esse tempo nunca mais volte e que você não pode ler esta crônica.

(*)Atilano Muradas é jornalista, teólogo, pastor, músico, professor, produtor musical.

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