Header Ads

A vó Justa

José Roberto Peters *  

A vó Justina — vó Justa, como muita gente chamava — era mãe do meu pai. Ponto de equilíbrio de uma família que tinha poloneses, alemães e ucranianos, gente que historicamente nunca se deu muito bem. Era cafuza: negra com aquele cabelo e as feições de índio. Linda. Apesar de sua descendência afro-indígena, e provavelmente pelo sobrenome português que trazia, era uma católica fervorosa.

De pouca instrução — foi à escola pra aprender os rudimentos da leitura e da escrita — tinha muito a ensinar. Viveu uma religião libertadora, que pregava o cuidado aos mais necessitados. Hoje, bem longe no tempo, os netos se dão conta que a vó vivia pela teologia da libertação, que via todos como iguais e que alguns precisavam de mais cuidado que outros.

Em orações — que fazia antes de dormir, e em voz alta — nunca pediu nada mais que trabalho e saúde pra todos. E agradecia cada dia como se tivesse recebido o maior presente: estar ali. Simples assim. Ajudou a olhar os netos todos e em certa época cuidou de mim, o mais velho, e do Fred, o mais novo. Eu tinha ido pra Joinville estudar e o Fred acabava de nascer.

Pensa que era difícil? Pra ela não. Cuidava igual, mas “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, como se um dia tivesse lido Marx. E com sabedoria — como se tivesse lido Françoise Douto sobre as relações entre adultos e crianças — pegou o Fred com um livro de cálculo e, sem alarde, mas com voz doce, disse ao guri que apenas engatinhava: “esse livro é do Beto”. Pronto, e o menino — que se tornaria um adulto com gosto para os estudos — veio engatinhando e me entregou o livro.

Um dia nos deixou. O tempo passou e a saudade dela passou a fazer parte da gente. E uma coisa que sempre comentamos é que, fosse ela viva, ficaria espantada com algumas coisas: com gente que, sem conhecer nem o Brasil, grita raivosamente na rua que uma pessoa de camisa vermelha tinha que ir morar em Cuba; gente que despreza quem olha primeiro para os mais necessitados; gente que se acha superior a outra gente; gente que se diz religiosa incitando muitos com discursos homofóbicos.

Porém, diferente de muitos de nós, e bem ao seu estilo, em suas orações ia pedir por todos. E quem sabe não fosse atendida.
  
José Roberto Peters é Mestre em Educação Científica e Tecnológica, professor universitário e consultor técnico da OPAS no Ministério da Saúde

Nenhum comentário

Os comentários neste blog passam por moderação, o que confere
ao editor o direito de publicá-los ou não.