A reverência esquecida. Ou, quem sabe, negligenciada.
Carlos Roberto Felice
Jornalista MG 6139 JP
Infeliz da cidade que não aprendeu a reverenciar os seus mortos, nem ser intransigente na defesa da memória de seu povo. Um povo sem memória despreza feitos e conquistas, alegrias e sofrimentos, júbilos e lamentações, vitórias e derrotas, despreza a sua história ao não reconhecer o valor dos antepassados. Perde em conteúdo uma comunidade que cultua apenas o presente efêmero, ignora pessoas, fatos e coisas pretéritas. Eu me recuso a incluir minha terra entre as que se despojaram do compromisso com o passado, que se empenha só no imediato, e que vê o porvir como algo incerto, mesmo porque, a bem da verdade, o nosso povo é respeitoso e sentimentalmente ligado a tudo o que lhe diz respeito mais de perto. Mas há liturgias que não podem ser esquecidas ou negligenciadas, ou, pior ainda, descartadas por outros, isto é, por aqueles que estiveram na posição de mando à frente de poderes constituídos.
Lamentavelmente, não há, em Araguari, um gesto oficial que perpetue, em homenagem explícita, a memória do Prefeito Milton Lemos da Silva e a do Deputado Raul Belém, figuras notáveis pelas qualidades pessoais e pelos serviços prestados ao Município. Não há uma praça sequer, ou mesmo uma longínqua rua de um bairro distante, ostentando os seus respectivos nomes.
Convivi com ambos e sou testemunha do que fizeram, cada qual com as suas idiossincrasias, com suas personalidades até antagônicas, mas com a mesma obstinação em servir ao povo, com idêntica disposição e garra para a luta, e com os seus coincidentes objetivos de fazer Araguari mais progressista e pujante.
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<< Milton Lemos da Silva foi referência unânime, exemplo de dignidade e respeito, lembrado como a grande reserva moral da cidade. Culto e sóbrio, apaixonado pela artes e pelas letras, empresário bem-sucedido, era homem de conduta irrepreensível e irretocável e, acima de tudo, um democrata autêntico. Foi sempre afeito a ouvir o que os outros tinham a dizer, respeitando os pontos de vista, mesmo que conflitantes com os seus. Avesso a polêmicas sem sentido, sabia entender até a pressa dos imediatistas, e quando expunha o que pensava o fazia através de ideias bem-elaboradas, alicerçadas na lógica e na sensatez. Por exemplo, quando pedia a palavra numa reunião para se decidir alguma coisa relevante, os demais silenciavam a sua voz porque sabiam que o que havia de mais prudente e objetivo seria defendido por ele. Se todos concordam que o açodamento é inimigo da prudência, Milton Lemos da Silva ia costumeiramente com vagar para depois seguir, persistir e perseverar. Foi um empreendedor. Credita-se a ele a inclusão de Araguari no universo das comunicações. Fundador da Companhia Telefônica Araguarina, fez dela uma das mais prósperas, e dela se retirando, compulsoriamente, quando, à força, lhe tiraram o comando pela ação implacável de uma filosofia administrativa questionável, fazendo-a mais uma dentre tantas empresas estatizadas pelo governo. Fundou com companheiros mais próximos a Rádio Planalto, que se tornou a grande força na formação da opinião pública, ao mesmo tempo em que dotou a cidade de uma rede de cinemas com tecnologia compatível com o que havia de mais moderno na época. Produtor Rural de primeira grandeza, abraçou esse lado da economia com a mesma competência dos pioneiros que sempre acreditaram no Brasil como celeiro do mundo. Presidente do Araguari Atlético Clube, possibilitou à agremiação viver os seus melhores anos de glória. Nos anos 40, foi fundador do Rotary Clube de Araguari, e como um de seus membros mais ilustres abraçou missões e incumbências, prestando o seu trabalho substantivo com talento sempre renovado. Tinha sempre consigo a solidariedade e o companheirismo como objetivos finais. Era tolerante e conciliador por natureza. Com esse perfil, em meio a uma crise política grave que assolava o município, surgiu como solução de consenso para enfrentar as mazelas da época e foi Prefeito de Araguari, na década de 70, tendo presidido o município com honestidade, coragem, engenho e arte, responsável por uma das mais profícuas administrações de nossa história, marcada obstinadamente pela construção da infraestrutura da cidade, obra de largo espectro que os carreiristas não gostavam por não serem eleitoreiras.
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<< Raul Belém morreu e a partir daí a cidade ficou órfã, como órfãos ficaram os seus conterrâneos. Figura popular da boêmia diz com certa graça e alguma originalidade que a partir de sua morte " a criança chora e a mãe não escuta", isto é, perdemos o referencial para a solução dos impasses político-administrativos; perdemos, de repente, até com quem reclamar em assuntos diversos; perdemos, inclusive, quem ouvisse os choramingos dos descontentes, mesmo porque ele sempre foi interlocutor paciente e solidário. Tinha a capacidade de se comunicar como poucos e era dono de uma dialética poderosa. Desta forma, interagia com todos, exercitando uma facilidade enorme de reunir gente ao seu redor. Não guardava ressentimentos e tinha a humildade para rever os próprios atos, tanto é que se reconciliava até com os adversários mais ferrenhos. Raul Belém morreu e não tivemos mais acesso fácil aos escalões do Poder, não tivemos tampouco a quem reclamar benefícios que a comunidade sempre aspirou. Ficamos sem líder. Até hoje a sua ausência é sentida e pranteada porque falta quem nos lidere com influência. Perdemos a intimidade com as esferas do poder e hoje derrapamos no tempo quando precisamos chegar aos escalões do governo, e com tristeza percebemos que, diferente de antes, o caminho nos dias de hoje tem muito mais acidentes e curvas sinuosas. Raul Belém faz falta. Identificava-se com as causas comunitárias e sua vida e seu trabalho estiveram dedicados à luta pela preservação dos valores culturais e das potencialidades do município. Homem plural, discutia sobre todos os assuntos e rebelava-se contra todos os efeitos advindos da sociedade injusta. Ajudou Prefeitos, fez obras, inclusive asfaltou estradas. A política era, portanto, a sua militância intensa, com preocupação com a situação do povo, e seu engajamento nas lutas pelas mudanças na sociedade deu-se desde a juventude. No anos de chumbo, indignou-se com os desmandos, com o vilipêndio da democracia, e declarando amor profundo às liberdades individuais pôs-se na luta contra o regime de exceção, o que lhe custou o mandato parlamentar e a suspensão de seus direitos políticos. Era um homem que não conhecida limites. Desafiou o conservadorismo de sua época, rompeu paradigmas, e teve competência para se firmar entre os políticos preeminentes do Congresso Nacional. Raul Belém já foi homenageado pelo Estado e pela União. Incrível, mas pelo seu Município, não.
Mesmo diante de duas biografias tão relevantes, os poderes constituídos, aos quais cabem a iniciativa das decisões oficiais, estiveram alheios a essa realidade e permaneceram como protagonistas de uma omissão injusta. Mas sempre é tempo para que a cidade expresse o sentimento de reconhecimento e de saudade de um Povo que é cativo da memória desses conterrâneos cujo legado serve para inspirar a todos, notadamente as lideranças emergentes.
Texto enviado por Marília Alves da Cunha. Artigo publicado originalmente no jornal Correio de Araguari.
Jornalista MG 6139 JP
Infeliz da cidade que não aprendeu a reverenciar os seus mortos, nem ser intransigente na defesa da memória de seu povo. Um povo sem memória despreza feitos e conquistas, alegrias e sofrimentos, júbilos e lamentações, vitórias e derrotas, despreza a sua história ao não reconhecer o valor dos antepassados. Perde em conteúdo uma comunidade que cultua apenas o presente efêmero, ignora pessoas, fatos e coisas pretéritas. Eu me recuso a incluir minha terra entre as que se despojaram do compromisso com o passado, que se empenha só no imediato, e que vê o porvir como algo incerto, mesmo porque, a bem da verdade, o nosso povo é respeitoso e sentimentalmente ligado a tudo o que lhe diz respeito mais de perto. Mas há liturgias que não podem ser esquecidas ou negligenciadas, ou, pior ainda, descartadas por outros, isto é, por aqueles que estiveram na posição de mando à frente de poderes constituídos.
Lamentavelmente, não há, em Araguari, um gesto oficial que perpetue, em homenagem explícita, a memória do Prefeito Milton Lemos da Silva e a do Deputado Raul Belém, figuras notáveis pelas qualidades pessoais e pelos serviços prestados ao Município. Não há uma praça sequer, ou mesmo uma longínqua rua de um bairro distante, ostentando os seus respectivos nomes.
Convivi com ambos e sou testemunha do que fizeram, cada qual com as suas idiossincrasias, com suas personalidades até antagônicas, mas com a mesma obstinação em servir ao povo, com idêntica disposição e garra para a luta, e com os seus coincidentes objetivos de fazer Araguari mais progressista e pujante.
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<< Milton Lemos da Silva foi referência unânime, exemplo de dignidade e respeito, lembrado como a grande reserva moral da cidade. Culto e sóbrio, apaixonado pela artes e pelas letras, empresário bem-sucedido, era homem de conduta irrepreensível e irretocável e, acima de tudo, um democrata autêntico. Foi sempre afeito a ouvir o que os outros tinham a dizer, respeitando os pontos de vista, mesmo que conflitantes com os seus. Avesso a polêmicas sem sentido, sabia entender até a pressa dos imediatistas, e quando expunha o que pensava o fazia através de ideias bem-elaboradas, alicerçadas na lógica e na sensatez. Por exemplo, quando pedia a palavra numa reunião para se decidir alguma coisa relevante, os demais silenciavam a sua voz porque sabiam que o que havia de mais prudente e objetivo seria defendido por ele. Se todos concordam que o açodamento é inimigo da prudência, Milton Lemos da Silva ia costumeiramente com vagar para depois seguir, persistir e perseverar. Foi um empreendedor. Credita-se a ele a inclusão de Araguari no universo das comunicações. Fundador da Companhia Telefônica Araguarina, fez dela uma das mais prósperas, e dela se retirando, compulsoriamente, quando, à força, lhe tiraram o comando pela ação implacável de uma filosofia administrativa questionável, fazendo-a mais uma dentre tantas empresas estatizadas pelo governo. Fundou com companheiros mais próximos a Rádio Planalto, que se tornou a grande força na formação da opinião pública, ao mesmo tempo em que dotou a cidade de uma rede de cinemas com tecnologia compatível com o que havia de mais moderno na época. Produtor Rural de primeira grandeza, abraçou esse lado da economia com a mesma competência dos pioneiros que sempre acreditaram no Brasil como celeiro do mundo. Presidente do Araguari Atlético Clube, possibilitou à agremiação viver os seus melhores anos de glória. Nos anos 40, foi fundador do Rotary Clube de Araguari, e como um de seus membros mais ilustres abraçou missões e incumbências, prestando o seu trabalho substantivo com talento sempre renovado. Tinha sempre consigo a solidariedade e o companheirismo como objetivos finais. Era tolerante e conciliador por natureza. Com esse perfil, em meio a uma crise política grave que assolava o município, surgiu como solução de consenso para enfrentar as mazelas da época e foi Prefeito de Araguari, na década de 70, tendo presidido o município com honestidade, coragem, engenho e arte, responsável por uma das mais profícuas administrações de nossa história, marcada obstinadamente pela construção da infraestrutura da cidade, obra de largo espectro que os carreiristas não gostavam por não serem eleitoreiras.
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<< Raul Belém morreu e a partir daí a cidade ficou órfã, como órfãos ficaram os seus conterrâneos. Figura popular da boêmia diz com certa graça e alguma originalidade que a partir de sua morte " a criança chora e a mãe não escuta", isto é, perdemos o referencial para a solução dos impasses político-administrativos; perdemos, de repente, até com quem reclamar em assuntos diversos; perdemos, inclusive, quem ouvisse os choramingos dos descontentes, mesmo porque ele sempre foi interlocutor paciente e solidário. Tinha a capacidade de se comunicar como poucos e era dono de uma dialética poderosa. Desta forma, interagia com todos, exercitando uma facilidade enorme de reunir gente ao seu redor. Não guardava ressentimentos e tinha a humildade para rever os próprios atos, tanto é que se reconciliava até com os adversários mais ferrenhos. Raul Belém morreu e não tivemos mais acesso fácil aos escalões do Poder, não tivemos tampouco a quem reclamar benefícios que a comunidade sempre aspirou. Ficamos sem líder. Até hoje a sua ausência é sentida e pranteada porque falta quem nos lidere com influência. Perdemos a intimidade com as esferas do poder e hoje derrapamos no tempo quando precisamos chegar aos escalões do governo, e com tristeza percebemos que, diferente de antes, o caminho nos dias de hoje tem muito mais acidentes e curvas sinuosas. Raul Belém faz falta. Identificava-se com as causas comunitárias e sua vida e seu trabalho estiveram dedicados à luta pela preservação dos valores culturais e das potencialidades do município. Homem plural, discutia sobre todos os assuntos e rebelava-se contra todos os efeitos advindos da sociedade injusta. Ajudou Prefeitos, fez obras, inclusive asfaltou estradas. A política era, portanto, a sua militância intensa, com preocupação com a situação do povo, e seu engajamento nas lutas pelas mudanças na sociedade deu-se desde a juventude. No anos de chumbo, indignou-se com os desmandos, com o vilipêndio da democracia, e declarando amor profundo às liberdades individuais pôs-se na luta contra o regime de exceção, o que lhe custou o mandato parlamentar e a suspensão de seus direitos políticos. Era um homem que não conhecida limites. Desafiou o conservadorismo de sua época, rompeu paradigmas, e teve competência para se firmar entre os políticos preeminentes do Congresso Nacional. Raul Belém já foi homenageado pelo Estado e pela União. Incrível, mas pelo seu Município, não.
Mesmo diante de duas biografias tão relevantes, os poderes constituídos, aos quais cabem a iniciativa das decisões oficiais, estiveram alheios a essa realidade e permaneceram como protagonistas de uma omissão injusta. Mas sempre é tempo para que a cidade expresse o sentimento de reconhecimento e de saudade de um Povo que é cativo da memória desses conterrâneos cujo legado serve para inspirar a todos, notadamente as lideranças emergentes.
Texto enviado por Marília Alves da Cunha. Artigo publicado originalmente no jornal Correio de Araguari.
Marília tem razão. Todos esses ícones da História araguarina morreram pobres, à margem, de tanto bem que fizeram ao povo. Deviam ter feito mais às próprias famílias que devem estar vivendo penúrias!
ResponderExcluirEsse é mais um grito reprimido dos araguarinos, quase um gemido de uma população perplexa sem saber por que nossos heróis não são reverenciados nem em vida, muito menos depois de falecidos. Resta aos parentes observarem entristecidos ao tempo passar sem haver quem os socorram para fazer surgir, em algum lugar, alguma referência ao nome querido, que muitas vezes pareceu em vida aos familiares que deu mais valor aos problemas públicos do que aos carinhos cobrados em casa. Esses grandes políticos, como os que temos ainda vivos, a exemplo do Miltinho, viveram em ambientes da política nacional, onde no Congresso mesmo nos momentos de extrema divergência de opinião os pares se tratam com cortesia e respeito, a bem da melhor decisão. Entre os nossos cidadãos políticos residentes na cidade podem eles conviver harmonicamente? Podem eles unirem-se esquecendo idiossincrasias e impor regras de conduta para o futuro da cidade? Estou vendo hoje que em Araguari basta um herói deixar o cargo e o telhado vem abaixo com as pedradas, talvez para inibir sua pretensão na próxima campanha. O Alvim agora, por exemplo, creio que trabalhou muito, representou nossa cidade, e agora alguém vem reclamando que deixou de pagar uma conta de telefone... É possível diminuir o nível de leviandades? Nem pensem que tenho algum relacionamento com ele para justificar alguma defesa, mas não podemos retirar seus méritos utilizando leviandades para obscurecer uma obra a serviço da comunidade. Falo apenas para que examinem se podemos reverenciar os vivos! Se entendermos que não, ao menos não podemos dispensar esses experientes cidadãos que trabalharam mais que todos na cidade. Para me entenderem eu pergunto antes: os prefeitos convidam os ex-prefeitos para colaborarem em suas administrações? Será que os partidos políticos podem diminuir seus ódios de campanha, idiossincrasias, ideologias, vicissitudes, e se unirem ao prefeito? Saberão ouvir e calar na hora certa? É possível o prefeito aceitar essa ajuda sem que isso represente um prejuízo político para si mesmo? Entendo que as campanhas políticas deixam marcas nos condutores da vida da cidade, mas os partidos políticos são patrocinadores da perpetuação dos ressentimentos e do abandono ao qual estão relegados nossos heróis. Não culpem os araguarinos que não se envolvem na política partidária, são de bondade extremada, mas sofrem como vítimas das ideologias e das intrigas pessoais. Ou não? Então, se eu estiver certo, precisamos buscar ainda hoje a convivência pacífica, mesmo com aqueles que já estamos julgando como culpados, como indignos. Enfim, a cidade não é formada somente de santos e temos que aceitar que na vida pública, na vida política, também os diabos são agentes do processo de mudança em igualdade de condições legais.
ResponderExcluirNatal