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Meu tipo inesquecível

[Homenagem a Geraldo França de Lima]

Por Frei Betto (*) 

Geraldo França de Lima – mais tarde, imortal da Academia Brasileira de Letras – era meu professor de história. À noite, na fachada da escola, um anúncio luminoso se alternava nas cores verde e vermelho: “Educandário Ruy Barbosa”. Minha sala tinha as janelas abertas para a rua, de modo que levei certo tempo para me acostumar a ver toda a classe, durante as aulas, passar do verde ao vermelho ao verde.

Não me parecia estranho que um professor trajasse sempre terno azul-escuro puído na gola e nos punhos; sapatos ásperos, saudosos de uma boa graxa; a barba tresnoitada conferindo-lhe aspecto de amanuense mal-pago e endividado. O insólito era a maneira como se justificava para deixar-nos à vontade em classe, enquanto se ocupava de seus papeis:

- Hoje não tive tempo de preparar a aula. Estou corrigindo a conferência que o Presidente Juscelino Kubitchek fará, semana que vem, para os diplomatas que irão servir nos países do Mediterrâneo.

Embora já não fosse presidente do Brasil, JK merecia tratamento, como é praxe quando se mantém contato pessoal com ex-presidentes. Parecia-me incrível que um professor de escola pouco conceituada fosse tão próximo de um homem importante como JK.

- Hoje, fiquem à vontade – dizia o professor na semana seguinte -, porque não preparei aula. Meu amigo João Guimarães Rosa está terminando de escrever um livro e, como sempre faz, pediu-me para ler os originais.

Era demais! O autor de Grande Sertão, Veredas figurava entre os mais destacados talentos da literatura brasileira. Como um professor de história ousava mentir tanto a seus alunos?! Com certeza, um caso notório de megalomania.

Outra desculpa dada pelo professor, para entregar-nos ao dolce far niente, era a de que andava ocupado com a redação de seu primeiro romance.

De fato, antes que o ano letivo findasse, Geraldo França de Lima lançou com sucesso de crítica e público, Serras Azuis, o primeiro volume de uma obra de reconhecido valor literário. Pelos jornais, obtive a confirmação de que ele era um dos ghost writers de JK e amigo intimo de Guimarães Rosa.

Na noite da prova final de história, ele carregou para a sala de aula uma caixa com exemplares de Serras Azuis:

- Quem comprar o livro terá direito a desconto e dedicatória, e ganha nota 10. Quem não comprar ganha 8.

Minha penúria valeu a nota menor.

Engana - se quem julgar o escritor um professor irresponsável, que barganhava a venda do seu livro em troca de boas notas. As aparências, as primeiras impressões, quase sempre enganam.

Geraldo França de Lima era um excelente mestre, profundo conhecedor de história, tanto a do Brasil quanto a Universal. Fora secretario de Bernanos, quando o famoso escritor Frances se exilou em Minas. Assistíamos às suas aulas com o deleite e o proveito de uma boa palestra. Levei tempo para compreender o pioneirismo de seu método de ensino. Ele não dava provas como os outros professores, que nos exigiam noites em claro decorando a matéria, e muita transpiração na hora de responder às questões em folha de papel almaço, ou discorrer sobre o “ponto” selecionado. O professor França de Lima apenas prevenia -nos:

- Na próxima semana darei prova sobre a invasão holandesa ao Brasil. Procurem ler a respeito e tragam toda bibliografia que encontrarem sobre o assunto.

Na aula seguinte, lá estávamos cercados de textos que abordavam a invasão holandesa e as façanhas de Henrique Dias. O professor entrava em classe, redigia dez perguntas no quadro-negro e advertia-nos:

- Copiem as questões, consultem os livros e os colegas, respondam todas com atenção, enquanto fico fora da classe. Retorno em quarenta minutos para recolher as provas.

Inacreditável! Tinha-se a impressão de que ali estava o único professor do mundo que deixava os alunos “colarem” descaradamente. Por isso, ninguém jamais tirou nota inferior a 8. (Também não me lembro de alguém receber 9. Creio que tinha predileção por números pares.)

Anos depois, tive consciência de que Geraldo França de Lima foi meu único professor de ensino médio a estimular seus alunos a pesquisar. Enquanto os demais nos exercitavam na arte da decoreba ou na magia da adivinhação, ele incentivava a pesquisa e o aprendizado coletivos. Tratava-se de um pioneiro, a quem a mineirice imprimia um enganoso aspecto.

(*) Referências:
Frei Betto. Meu tipo Inesquecível in: Alfabbeto: Autobiografia escolar. Ed. Ética. São Paulo. 2002. Cap. 12. Páginas 201 a 204

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